Primeiro Relatório Missionário - setembro de 2005 - Guiné - Conacri

Fiquei ausente aqui do blog nos últimos tempos... Uma correria danada! Talvez seja interessante pra vocês ler os meus relatórios missionários escritos na Guiné... com o frescor do momento!

Escrito em setembro de 2005, logo após minha chegada em "terras guineenses":

1- Primeiras impressões

A acolhida foi maravilhosa! Praticamente todos os cooperantes me esperando no aeroporto! Eu que pensava que talvez não tivesse ninguém… Que meu e-mail não tivesse sido recebido... Mas, que nada! Foram em peso me receber! Uma grande surpresa! A própria viagem já foi sinal da providência divina: Primeira classe entre São Paulo- Paris, classe executiva entre Paris-Conakry... Com pessoas especialmente escolhidas pela providência para estarem ao meu lado: Uma mulher canadense que trabalha para uma organização não governamental bastante interessante, simpaticíssima e um senhor guineense, que apresentou de forma bastante clara seu país, contando a história, a situação política, enfim... Uma viagem agradabilíssima, embora exaustiva (22 horas de viagem no total, contando o tempo de mudança de avião).

Cheguei mais cedo do que eu mesma havia previsto no e-mail, graças a este avanço do avião, cheguei a tempo da adoração na casa... Jesus, Ele mesmo queria me receber! Tivemos um papinho de coração a coração... Um super consolo! Um alimento sem igual! Adoração com a maioria dos irmãos da Comunidade Emanuel da Guinée, umas 10 pessoas (eles possuem o hábito de terem uma hora de adoração, com todos juntos, toda a última segunda-feira do mês, que calhou de ser o dia da minha chegada.. Não por acaso! Teocidências!). Após a adoração um bate-papo gostoso com os irmãos, onde pudemos nos conhecer um pouquinho, e depois do banho, um jantar, aí sim com todos os cooperantes, com direito a aperitivo e tudo, extremamente simpático. Adivinhem o cardápio? Só digo uma coisa: incluía BANANA FRITA!!!!! Coincidência? Vcs acreditam em coincidência? Eu não... Só em teocidência: atrás de cada acontecimento de nossas vidas existe a mão de um Ser amoroso, que quer a nossa felicidade acima de tudo e que tudo faz para nos ver felizes... Nós é que não aceitamos essa tal felicidade! Por que tanto medo de ser feliz? Aí estão os psicólogos que não me deixam mentir e passam a vida tentando entender...

Na hora de dormir, outra surpresinha maravilhosa, lembrei-me subitamente de um sonho de infância: dormir naquelas camas medievais que possuem um cortinado em volta... Adivinhem como é a minha cama? Com o mosquiteiro em volta... O que é o mosquiteiro se não um cortinado que torna o ambiente bastante acolhedor, como um berço, como um ninho... Mais um sonho realizado! Que lindo! Nem me lembrava mais do sonho... Mas o Senhor, na sua ternura infinita, nunca se esqueceu! Nunca! E se encarrega pessoalmente de ir realizando um a um dos meus sonhos... Um Pai amorosíssimo! Que posso mais eu querer? Tenho até medo de sonhar! Será reflexo de algum medinho de ser feliz? Medo que os sonhos se realizem todos, e aí? Que irá restar se o que torna a vida interessante é justamente essa capacidade de sonhar e ver os sonhos se tornando realidade pouco a pouco?

Estou feliz, muito feliz!... Talvez a esta altura vcs se perguntem: mas vc tem água encanada? E luz elétrica? Como é o ambiente na África?

Não, não tenho água encanada, tomo banho de canequinha, a luz elétrica no período de 19 às 24 horas aparece em dias alternados (dia sim, dia não). Ontem foi um dia sim, tivemos o jantar com luz elétrica, hoje (terça-feira à noite) é um dia não, estou escrevendo estas primeiras impressões com a bateria do computador pois estou sem sono e tenho uma absoluta necessidade de partilhar com vcs tudo o que estou vivendo, de colocar para fora de alguma forma o turbilhão de emoções deste primeiro dia na Guinée, ou melhor, das minhas primeiras 24 horas em continente africano!!!

O dia hoje foi repleto: Dormi até um pouco mais tarde, Tanguy (um dos cooperantes FIDESCO, o enfermeiro francês) me esperou, fomos juntos ao Dispensaire Saint Gabriel (Centro de Saúde ou Unidade básica de Saúde, como queiram, mas que aqui recebe este nome). Fizemos um “tour”, me apresentou aos funcionários... Foi muito interessante! Depois fomos ao “Mercado”, ou feira livre... Que loucura! Que sujeira! Que bagunça! Aliás, toda a cidade de Conakry é assim esta bagunça toda, agora realmente acredito tratar-se de um dos países mais pobres do mundo! Um guineense me disse hoje que dos 160 países mais pobres do mundo, segundo um dos últimos relatórios da UNESCO, a Guinée encontra-se no n.157... Gente! Que pobreza! Eu que pensava conhecer a pobreza... Eu dizia: Olhe eu não sou européia, não vou descobrir a pobreza, já “amassei muito barro” (expressão típica para os que trabalham na periferia, próximo às favelas) andando pelas vielas das favelas do meu país, sei o que é pobreza!!! Pensava que sabia! Hoje pude ver no hospital crianças desnutridas, mas com um tal nível de desnutrição que eu só conhecia dos livros de Pediatria... Jamais havia visto assim! Pensem naquelas fotos da Etiópia... Naqueles documentários do Globo Repórter, da TV Cultura, enfim... Igual ou pior...

Fui visitar com a Lise (outra enfermeira da equipe, que será minha companheira – iremos morar juntas daqui a alguns meses) o hospital universitario da região... Toda terça-feira ela visita as pessoas, com o objetivo de encoraja-las. Quanta doença! Que condição de trabalho! Hospital? Aqui nem o hospital universitario tem água encanada...

2- A cidade de Conakry

Conakry é a capital da Republica da Guiné, uma cidade com 1 milhão e meio de pessoas, que vivem em condições sub-humanas. Para que vocês tenham uma idéia: O esgoto é a céu aberto na cidade inteira! 1 milhão e meio de habitantes com o esgoto a céu aberto! Dá para imaginar? Me disseram que o centro da cidade tem esgoto subterrâneo... Ainda não conheci o centro! Mas na cidade toda não existe NENHUM semáforo (ou farol)... Já imaginaram a bagunça do trânsito? Confesso que estou com medo de dirigir por aqui... A quantidade de pessoas na rua é enorme, as casas são muito pequenas e muito quentes, a vida acontece na rua! (a maioria das ruas é de terra, inclusive a minha), até mesmo o banho - É comum andar pelas ruas e ver as pessoas se banhando em bacias, com muito pudor, enroladas em panos, mas tomando banho... As mulheres sempre com roupas muito coloridas carregando seus filhos em panos amarrados nas costas. É impressionante a quantidade de crianças! As famílias são enormes!

Como a maioria das pessoas são muçulmanas (80 % da população), a poligamia é natural. Como me dizia Binta, uma costureira amiga, que mora aqui perto: “É obrigatório, a gente tem que aceitar!” e ela me conta um pouco da sua história... A relação com o seu marido nunca mais foi a mesma depois que ele arrumou a segunda esposa, sua “co-esposa”. Eles moram todos na mesma casa, cada esposa tem o seu quarto onde dorme com seus filhos. Binta dorme com seus 7 filhos. E atualmente parece estar grávida novamente!!! Chegou a pensar em aborto, conversamos longamente... Parece ter decidido “guardar” a criança! Rezem para isso! Compreendo as dificuldades dela, mas... Uma vida humana é sempre uma vida humana!

Estamos do outro lado do Atlântico!!! Mas praticamente não temos praia... São pedras, portos... Tudo muito sujo! Aliás acho que a coisa que mais me impressionou foi a sujeira! Impressionante como se possa viver assim! Existem uns animaizinhos “lezars”, algo entre a lagartixa e o jacaré, de 15 a 30cm de comprimento, possuem a cabeça como de um pequenino jacarezinho, mas o corpo de uma lagartixa grande, ou lagarto, sei lá... Só sei que eles estão em todos os lugares... Exceto no meu quarto! Mantenho tudo sempre fechado, justamente para evitar a entrada deles... Não fazem mal algum, exatamente como a lagartixa... Mas me assustam! Enquanto estou aqui escrevendo estou vendo dois passeando pela tela da janela! Ratos e baratas fazem parte da vida das pessoas! Vou ter que me acostumar! Peço que rezem! Nenhum risco! Somente um desconforto!!!

Não posso reclamar, estou com o ego massegeadíssimo! Sinto-me como uma das mulheres mais belas do mundo! Nicole Kidman, deve sofrer um assédio semelhante! As crianças brincam, por onde passamos gritam: Fote! Fote! (que em sussu, o dialeto local, significa: Branco! Branco!). Quando possuem a oportunidade chegam perto para passar a mão no meu cabelo... Alguns meninos e rapazes dizem coisas mais desagradáveis... Mas... Faz parte! Causam apenas desconforto... Nada que impeça o livre trânsito por toda a cidade... São como crianças! Nenhum risco! Nunca houve nada de mais grave a nenhum dos cooperantes que passou por aqui nos últimos 15 anos! Não existe nem muito roubo por aqui... Vocês não imaginam o escândalo feito por uma das auxiliares de enfermagem porque sumiu a sua carteira enquanto fazia o curativo em um preso. Na prisão, deixou a carteira do lado e não queria que sumisse! Ficou indignadíssima! Eu como boa brasileira e “quase paulistana” dizia: “E... vá... Nem tinha tanto dinheiro assim... Vamos embora!” Mas que nada, ela ficou lá até que entregassem a sua carteira! Fiquei impressionada! Foi então que percebi o quanto a santa indignação ainda faz parte desta cultura! É inadmissível um roubo! Era uma questão de princípio... Ela não poderia aceitar com naturalidade e simplesmente ir embora como eu havia proposto... Ela precisava mostra a eles que isso não se faz! Que eles precisam ter uma postura diferente! Dá para imaginar? É assim que funcionam as coisas por aqui!

Nossa! Há tanto a contar! Difícil colocar tanta vida no papel! Mas o que aqui escrevo é sempre no intuito de que vocês participem comigo dessa maravilhosa experiência de vida!

4- O Islamismo

Iniciamos na semana passada o mês do Ramadan, a quaresma dos muçulmanos... Impressinante o zelo deles pela oração! Nos horários de oração: 5:00 da manha, 7:00, 12:00, 17:00 e 19:00... Não sei ainda os horários ao certo... Mas por toda a cidade escuta-se alguém que reza em árabe pelo microfone! Mais parece um grito, na verdade!

Quarta-feira passada, no dia em que se iniciava o mês do Ramadan, saí com o Frederic, médico francês que também é cooperante Fidesco aqui comigo, para ver... Em frente as Mesquitas, as pessoas se distribuem pela rua: mulheres de um lado e homens do outro (Aliás, na Missa também é assim separado: homens de um lado, mulhers do outro.) Com pequenos tapetes, se prostram em direção a Meca... No meio da rua, tudo muito bem organizado, em filas... Com um tal zelo! Jejuam o dia todo, só podem comer durante a noite neste mês!

Enfim, um outro mundo! Tenho a impressão de estar muito mais distante do que apenas um Oceaninho nos separando... A diferença cultural é imensa! Não sei como será desenvolver um trabalho de qualidade! Não sei o que faremos!

Se tiverem idéias, sugestões... Aceito TODAS! Preciso de toda a luz do mundo!

Já tive que assistir (cuidar) de 3 casos de neuro-paludismo (malária que já atingiu o sistema neurológico das crianças!!!) É impressionante! Nunca tinha visto nem um mísero caso de malária! Preciso a princípio estudar essas doenças, estudar o vocabulário médico em francês... Ainda possuo muita dificuldade em escrever em francês, principalmente a descrição de um exame clínico! Enfim! Sem contar os 6 dialetos locais!!!! Os cooperantes que já estão aqui há algum tempo falam um pouco de cada dialeto para conseguir se comunicar com as pessoas! Já deu para perceber que tenho muito estudo, muito o que aprender para poder fazer algo... Sinto-me muito pequena e incapaz! Só pela Graça!

5- Minha casa

Moro numa casa boa e grande: 3 quartos no interior e 2 fora (2 suites, com banheiro acoplado), uma grande sala, cozinha e um terraço delicioso onde fazemos a maioria das refeições. Atualmente, no interior da casa estão: Antoine, administrador do Centro, Tanguy, enfermeiro, Frederic, médico. E nos quartos (suítes) Lise e eu, enquanto não se desocupa uma outra casa aqui perto onde iremos morar. Todos são franceses, exceto eu. Duplamente estrangeira! Na equipe de europeus e no país africano! Mais uma dificuldade suplementar! Vejam que vcs tem muito a rezar por mim!

Todas as manhãs levamos os galões para o Centro de Saúde, onde os enchemos de água. Cada um tem direito a um galão por dia... Daí sai a água para escovar dente, tomar banho, privada, etc...

Na semana passada chegamos a passar 4 dias sem nada de eletricidade... O problema maior é a comida na geladeira! De sexta feira para cá parece que a coisa está melhor, voltamos ao esquema de noite sim, noite não... Até este presente minuto estávamos com luz elétrica, neste exato momento apagou tudo... Sorte que estou trabalhando na bateria do computador! Santa tecnologia! Agradeço a cada momento!

Ainda não senti falta de absolutamente nada! Todo material de higiene pessoal, tecnologia... Tudo muito bem pensado! Agradeço a todos que ajudaram com suas brilhantes sugestões!

6 - O Centro de Saúde São Gabriel

É uma estrutura de trabalho muito interessante: Com 35 funcionários, possui uma Maternidade acoplada que funciona 24 horas por dia, consultas de Pré-Natal, consultas de Clinica Médica e Pediatria, feitas por 2 médicos atualmente – Frederic e o Dr Mussá, um guineense, e 3 enfermeiros guineenses que se alternam também nas consultas clínicas (É hábito aqui, não são apenas os médicos os “consultantes”).

Para baratear os custos, os remédios são comprados de grandes embalagens e depois divididos em cones de papel, com a quantidade certa para a distribuição. Para tanto, no final do expediente de trabalho, os funcionários se alternam para a preparação dos tais “cones”... (é o que estamos fazendo na foto acima).

Hoje tivemos uma reunião com todos os cooperantes Fidesco. Ficou mais ou menos claro para mim que a minha prioridade será a questão da desnutrição, pelo menos neste primeiro momento. Este é sem dúvida o principal problema de saúde das crianças guineenses.

Termino aqui este meu primeiro relatório missionário, com o coração absolutamente pleno de alegria e satisfação. Com plena consciência das dificuldades que aparecerão... Mas certa de contar com a ajuda de cada um de vcs!!!

Vocês são parte importante e integrante desta aventura... Todos e cada um de vcs fazem parte da minha vida e agradeço a Deus por isso!